Amor, lealdade, amizade e política

Todo 17 de outubro se comemora na Argentina o “Dia da Lealdade” para lembrar a mobilização do povo trabalhador em 1945 que tirou Juan Domingo Perón da cadeia. O então vice-presidente e Secretário do Trabalho estava preso por pressão da oligarquia e a embaixada dos EEUU. Depois dessa histórica jornada, Perón pode concorrer às eleições e foi presidente de 1946 a 1955, os anos de maior crescimento econômico, prosperidade e igualdade social. Agradecemos a versão em português que fez Damián Kraus do trecho “Sinceramente” da Senadora e ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner que fala, precisamente, de lealdade.

17 de outubro de 1945


Por: DAMIAN KRAUS

Néstor me falou uma vez: “Eles vão perseguir você e os teus filhos”. E não falou alto. Ficou sério, e quando eu lhe perguntei: “Por que você está falando isso?”, ele mudou de conversa. Foi em El Calafate. O que eu não lembro é se foi na semana em que estivemos juntos, e que eu fiquei muito gripada, ou numa viagem anterior. Lembro sim, perfeitamente, da gripe, porque nessa segunda, 25 de outubro de 2010, eu já voltei doente de Río Negro, onde fui visitar o centro tecnológico de Pilcaniyeu. Doía minha garganta e tinha amigdalite, por isso não tive outra alternativa que cancelar uma viagem programada para a inauguração da fábrica da BGH, na Terra do Fogo. Eu não estava me sentindo bem mesmo e, quando falei isso para o Néstor, ele respondeu: “¡Ah, bom! Agora só falta que você morra e deixe o Cobos de presidente”. “Olha, meu querido, o Cobos foi você quem indicou…! Então, não enche!”, respondi eu, zangada. Ele olhou para mim e riu. Nos nossos códigos de discussão, esse era o jeito de me dar a razão. Ainda não sabíamos o que iria acontecer conosco. Não consigo deixar de pensar naquele momento em que, de algum modo, ele soube que já não mais poderia nos proteger. Ele não viu a si naquela fotografia da perseguição − simplesmente porque não deveria estar sentindo bem, e não apenas não falava nada a respeito, mas o ocultava. Não encontro nenhuma outra explicação. Ele sempre quis passar uma sensação de força, de vontade, de invulnerabilidade. Era o seu jeito de ser.

Quando, anos mais tarde, eu contei para o Máximo o presságio do Néstor, ele olhou para mim e disse: “E você achava o quê? Que reestatizar a Previdência, que os impostos ao agronegócio, as discussões salariais livres e os julgamentos dos crimes de lesa-humanidade eram de graça? Ah, Cristina…” Máximo nunca me chama de mãe, ao contrário da Florencia, que usa meu nome apenas quando quer sinalizar para mim que está brava ou que discorda de alguma coisa. É curioso. Apenas alguém que tivesse a intenção de nos transformar em monstros poderia supor que o amor que tínhamos entre nós, com Néstor, era porque eu tinha uma dependência emocional e política dele. Será isso um método de destruição política planejado, ou será simplesmente o que os psicólogos chamam de projeção das vivências ou das misérias de quem as fala ou as escreve?

Jamais me ocorreria dizer que o amor é uma “doença”, ou um mero cálculo de conveniência. Nós nos cuidávamos mutuamente, como se cuidam os que se amam de verdade – e eu sinto que a minha vida começou verdadeiramente quando comecei a namorar com ele. Foi na primavera de 1974. Embora a gente se conhecesse da faculdade, começamos a nos encontrar quase todo dia quando o Néstor foi morar com o Omar, o namorado da minha amiga Ofelia, a Pipa, e eu estava estudando com ele a disciplina de Direitos Reais para a prova final. Nós quatro estudávamos Direito na Universidade de La Plata. Néstor parecia um personagem saído de Maio de 1968, e me fazia lembrar de Daniel Cohn-Bendit, com seu cabelo comprido, liso, seus óculos quadrados, grandes e de armação preta, muito magro e com uma jaqueta de cor verde-oliva que fazia ele parecer – no comentário peçonhento do meu pai – um guerrilheiro descendo das montanhas. O meu pai, Eduardo Fernández, era da União Cívica Radical, mas da ala conservadora, e dizia que Alfonsín era “canhoto”* – eu sempre detestei essa expressão – e que ele, na verdade, não gostava nem um pouco do Néstor. Não apenas por ele ser peronista, mas também porque nunca compreendeu o nosso vínculo. Agora que penso, à distância, acho que foi impossível, para o meu pai, com aquela visão de mundo e da vida, entender os códigos dos jovens que se encontravam naqueles anos – os anos 1960 e 1970 – no meio do turbilhão. O Maio Francês, a Revolução Cubana, o peronismo e as ditaduras, Woodstock e o movimento hippie, a pílula anticoncepcional e a minissaia, Vietnã, Angela Davis e as Panteras Negras, os assassinatos dos Kennedy e de Martin Luther King, ou o fim do sonho americano. Meu Deus!… O mundo explodia pelo ar. A minha mãe, Ofelia Wilhelm, pelo contrário, então funcionária da Direção Geral da Renda e secretária-geral do seu sindicato, a Associação dos Funcionários da Renda e Imóveis, sempre entendeu a minha relação com Néstor. Uma vez, quando lhe perguntaram, num programa da TV, por que uma garota como eu, naquele tempo considerada muito atraente, tinha um namorado como o Néstor, que não era bonito, ela respondeu: “Porque ela encontrou alguém com quem conversar”. Tome mate, chocolate! E ela estava certa, porque nós conversávamos, e o tempo todo, e de tudo, menos de futebol. Eu nunca gostei de futebol. Disso ele sempre falava com a minha mãe, torcedora fanática do Gimnasia y Esgrima de La Plata, ou com a minha irmã. Mas além disso… Quem, naqueles anos, namorava alguém porque era bonito ou feio? Ninguém. Minha mãe entendeu. Meu pai, pelo contrário, aos três meses de eu ter conhecido Néstor, quando lhe falei que iria me casar, se saiu com outra típica reflexão dele. Lembro disso como se fosse hoje. Íamos no carro, ele dirigindo e eu sentada ao lado. Quando falei para ele do casamento, olhou para mim e disse: “Olha que o casamento não é um daqueles vestidos que você têm pendurados no armário e que, quando você não gosta mais, deixa de usar ou dá de presente, hein!” Poxa, cara! Como diz o ditado: uma pisada e paulada! Ele sempre criticou a minha mãe e o nosso – na sua opinião – excessivo gosto pelas roupas. Era inútil argumentar. E nunca entendeu, também não, a relação entre mim e o Néstor. Com exceção do ambiente da militância política, em outros âmbitos, sejam de trabalho ou sociais, eu ficava entediada que nem uma ostra. E acredito que a minha mãe havia percebido isso já antes, pois, se eu tiver que falar do que eu sinto mais saudade do Néstor, ainda hoje, é de não ter uma pessoa com quem falar e discutir a fundo. Sei que isso pode pegar mal, ou talvez pareça injusto, mas é verdade: o que eu podia sentir e ter nessas conversas com ele, nunca mais encontrei com ninguém. Além de ter sido meu companheiro e o pai dos meus filhos, Néstor foi meu melhor amigo.
Cristina Fernández de Kirchner (excerto do livro Sinceramente, 2019)


Néstor Kirchner morreu em 27 de outubro de 2010, dois dias depois da data da conversa que inicia o texto acima. Esse dia, o presidente Lula esteve lá. Esse dia também serão as eleições na Argentina. E esse dia faz aniversário o preso político Luiz Inácio Lula da Silva.


(*) NdT: “canhoto” (“zurdo” no original) é sinônimo de esquerdista na gíria política argentina.

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